Haroldo Andriguetto Junior
É tempo de recomeço escolar! E a cena é quase universal: de um lado, famílias preparam a lista de materiais, atualizam-se com as primeiras reuniões na escola e completam aquele ritual de volta às aulas dos filhos. De outro, as escolas encerram suas reformas de infraestrutura, capacitam seu corpo docente, alinham as informações e, então, preparam-se para a abertura de mais um ano letivo.
Há desafios já conhecidos e recorrentes do ensino, como a aprendizagem ativa, as novas tecnologias, a inclusão, o novo Ensino Médio e tantos outros. Mas este ano, especialmente, há um inimigo maior à vista: o excesso de telas. Sem dúvida, a missão da escola, que, entre tantas outras, está em formar seres humanos e desenvolver a dimensão social, motora, psíquica e emocional, sendo o maior laboratório de vida aos estudantes, está em risco. A tão nobre “preparação para a vida em sociedade” está mais difícil de acontecer se as escolas continuarem a receber crianças com alto e prematuro consumo de telas. Infelizmente, famílias têm fechado os olhos para crianças em tempo exagerado em frente a dispositivos, como tablets, computadores, smartphones, TVs e jogos.
O senso comum tem replicado uma narrativa sobre este assunto: “porque já nasceram neste ambiente, as crianças, os filhos, fazem parte de uma geração de nativos digitais, fluentes no manejo e na compreensão de ferramentas tecnológicas, e a escola deve, portanto, rapidamente, adaptar-se a essa revolução. Afinal, o cérebro das crianças está mais rápido, reativo, aberto à multiplicidade simultânea de tarefas e, portanto, à colaboração”.
Será mesmo? O fato é que esses “nativos digitais”, distantes de uma vida off-line e humana, deixam de lado uma parte importante da infância, retornando à escola sem a mente aberta das férias pela pausa construtiva. Muitos deles, inclusive, encontram-se no modo “robotizado”. Replicam linguagem imprópria à idade, trejeitos corporais inadequados, brincadeiras, pontos de vista e até visões de mundo incompatíveis para o seu tempo. Em grupo, tendem a ser impacientes, intolerantes ao tédio e agitados. Movimentam-se pouco, abalam sua coordenação motora, sem falar nos distúrbios de fala, peso e linguagem.
O pesquisador francês e especialista em neurociência cognitiva, Michel Desmurget, alerta que as crianças ocidentais de até 2 anos têm ficado quase 50 minutos por dia em frente à tela. Entre 2 e 8 anos, esse tempo aumenta para quase três horas e, até 12 anos, o tempo gira em torno de cinco horas por dia. De 13 a 18, o escândalo é maior, perfazendo um montante de quase oito horas. Se considerarmos um ano, contas simples nos levam a mil horas para um aluno de Educação Infantil (1,4 mês de tela), 1.700 horas para um aluno de Ensino Fundamental (2,4 meses) e 2.650 horas (3,7 meses) para um aluno de Ensino Médio. Em 18 anos de vida, essa conta equivale (pasmem!) a 30 anos letivos de telas.
Imersas em telas, por óbvio, a infância e a saúde têm sido as maiores vítimas. Para o pesquisador Desmurget, as crianças vêm sendo afetadas na dimensão somática, com índices escalonáveis em obesidade e maturação cardiovascular; na dimensão cognitiva, com efeitos na linguagem e na concentração; e, até na dimensão emocional, com altos níveis de ansiedade e agressividade. Isso sem falar em atrasos na fala, na linguagem, em habilidades motoras e socioemocionais, bem como prejuízos no âmbito da saúde.
Com rápido e direto reflexo nas escolas, muitos educadores já têm constatado o cansaço extremo das crianças, o aumento do estresse, os problemas comportamentais, os casos de depressão, a falta de concentração, as mudanças rápidas de humor, os transtornos de sono, a alimentação irregular, os distúrbios de visão e a consequente redução do tempo de interação social e familiar. E o pior: na ânsia pela resolução e por menosprezarem ou desconhecerem o perigo das telas, muitas famílias têm recorrido à medicalização e às terapias, chegando, em alguns casos, a conclusões médicas equivocadas, quando, de fato, o problema reside no excesso de telas em casa e na falta de presença e convívio familiar, com constância, atenção e intensidade.
Qualquer adulto, sem muito esforço, em um passado não distante, poderá lembrar quando tais dispositivos, ainda desconectados da internet, geravam um entretenimento “finito” às crianças, no sentido de haver ao menos o famoso “game over”, o fim do jogo, que marcava uma possível pausa e o recomeço. Hoje, lamentavelmente, os “short” vídeos, os “feeds” de redes sociais ou até mesmo os games são, em sua maioria, infinitos. Em especial, os feeds, dotados de uma inteligência algorítmica capaz de captar seus gostos e preferências, geram ainda mais experiências personalizadas e ajustadas aos usuários, quando não comerciais ou pornográficas, aumentando o tempo de permanência, fixando os olhares, “sequestrando” toda e qualquer possibilidade de interação humana e convívio social. Por essa razão que nações como Inglaterra, Taiwan e China, por exemplo, já regulam o uso de telas, em alguns casos, com multas aos pais pela exposição das crianças ao uso indiscriminado.
As crianças, assim como os seres humanos, por natureza, nasceram para a vivência em sociedade. O isolamento as adoece, basta observar o que vivenciamos durante a pandemia. Se a família não estabelecer uma Aliança com a Escola em prol da formação humana dos filhos, todos perderão a luta contra esse inimigo visível e devastador. Só a parceria, a relação de consumo e a presença em reuniões é insuficiente. Uma aliança pressupõe engajamento real, união de propósito e entendimento da causa educacional de seu filho com a formação para as famílias. Este alerta é para que não deixemos aumentar os níveis de fracasso escolar, tampouco deixemos adoecer professores e escolas, enquanto os nativos digitais continuam sendo um mito a serviço dos ingênuos, especialmente na Educação Básica.
Haroldo Andriguetto Junior é Doutor em Educação, Diretor da Escola O Pequeno Polegar e Vice-Presidente do SINEPE/PR.